"MEU VIZINHO LUNÁTICO
Sua figura não chamava atenção. Não no começo. Devo dizer que nas primeiras vezes em que tive contato com ele não percebi nada de anormal. Morava no meu prédio, num dos andares mais baixos, tendo o merecido ócio da aposentadoria como a sua principal ocupação. Afora isso, nunca fiquei sabendo de muita coisa. Não era do tipo que poderia ser encontrado num banco de praça.
Sua figura não chamava atenção. Não no começo. Devo dizer que nas primeiras vezes em que tive contato com ele não percebi nada de anormal. Morava no meu prédio, num dos andares mais baixos, tendo o merecido ócio da aposentadoria como a sua principal ocupação. Afora isso, nunca fiquei sabendo de muita coisa. Não era do tipo que poderia ser encontrado num banco de praça.
Chamava-se Juan Pérez, filho de uruguaios, conforme me disse certa vez.
Conduzia sua vida com austeridade. Nunca o vi com a barba por fazer, nem com as roupas ou os cabelos, estes últimos bem poucos, em desalinho. Era um cavalheiro. Magro até onde lhe permitia a saúde, tinha resquícios de fios negros e tez parda, herança pampiana que denunciava a sua origem.
Quem o ouvisse falar não poderia dizer que não era brasileiro. Articulava um Português castiço, aprendido ao longo dos anos e desenvolvido na faculdade de letras. Veio para cá muito jovem, abandonando todos os laços com a terra natal. Teve como profissão o ensino da nossa literatura. Chegou a me dizer, por detrás daquelas lentes espessas, que era uma honra viver na terra de Graciliano Ramos.
Mas ocorre que Juan Pérez enlouqueceu, assim me disseram. Primeiro o porteiro, depois o médico do 1202. Em pouco tempo não havia dúvidas quanto a isso. O diagnóstico do condomínio foi categórico, não sujeito a recurso. Meu vizinho uruguaio estava condenado à indiferença ou, quando muito, ao ridículo.
Não quis saber dos fatos que motivaram aquela conclusão, apesar de mais de uma vez ter sido interpelado por pessoas que, ao perceberem o meu alheamento acerca do caso, estavam dispostas a me pôr à par do assunto. Nunca quis ouvir. Devo ter agido assim em respeito a Juan, que compartilhava comigo o gosto por Machado de Assis.
Nos encontramos um dia no elevador, eu voltando do trabalho e ele com um pacote embaixo do braço. Na outra mão ele segurava um inútil guarda-chuva, considerando o verão que nos castigava. Eu não levava nada além da minha pasta e do meu estômago vazio. É essa a história que quero contar.
Juan olhou fixamente para mim e perguntou, sem cerimônia, o que eu mais queria na vida. Dei um sorriso como resposta e disse em seguida que, como todo mundo, queria apenas tranqüilidade. Depois disso não falei mais nada, até que o recíproco boa noite nos separou.
Entretanto, antes da nossa despedida, ele se dirigiu a mim seriamente:
- Não pense que você vai encontrar tranqüilidade numa casa confortável ou numa vida sem dívidas. Depois que resolver seus problemas materiais, quando estiver onde quer estar, quando viver como quer viver, e espero que consiga tudo isso, então estará diante do mais importante: será que você fez da vida o que queria?
Permaneci calado. Ele prosseguiu, segurando a porta do elevador:
- Não trocaria a sua juventude pela minha experiência, mas daria tudo para ter o tempo que você ainda tem. Se existe um conselho que poderia lhe dar, mesmo sem ter sido demandado – Juan gostava de palavras e construções difíceis – diria que aproveitasse o seu tempo desenvolvendo o que há de humano em você. Tudo passa. Um dia estará, como eu estou agora, diante do mais severo dos julgadores, a sua própria consciência.
Talvez eu nem precisasse dizer que cheguei em casa sem fome. Sempre fui muito susceptível. Meu sono também foi perturbado por aquelas palavras do uruguaio. Na manhã seguinte, logrei encontrar algum sentido no que ele dissera, mas tinha muitas perguntas a fazer. Ocorre que já era tarde.
Juan Pérez, meu vizinho uruguaio, por todos considerado lunático, havia se mudado naquele mesmo dia. Ninguém sabia como encontrá-lo. Tenho certeza que, se perguntasse muito por ele, acabaria desfrutando do seu status no prédio.
Para mim ele não era louco. Lamentei não poder ter conversado mais sobre o assunto do nosso último encontro. Ainda tenho comigo um livro que ele me emprestou: História da eternidade, de Jorge Luis Borges, que, aliás, nunca consegui entender."
Humberto Pimentel Costa.
Em maio de 2003.
Otimo conto... Poderia ser do Borges, claro. Mas aí não gostaria tanto...
ResponderExcluirFernanda