domingo, 22 de fevereiro de 2009

Grano duro

Elaine, minha irmã, disse que eu não deveria postar mais de uma vez por dia, pois, em pouco tempo, o entusiasmo iria embora. Segundo ela, vai faltar assunto e, em breve, passarei longos períodos sem escrever nada. Dessa forma, seria melhor guardar o que escrevo para colocar em dias sem idéias.
Talvez ela esteja certa. Ocorre que, pelo menos hoje, por ser domingo de carnaval, não me sinto culpado escrevendo mais de uma vez. Não que eu não tenha o que fazer, claro. Aliás, já decidi assistir, daqui a pouco, Batman - O Cavaleiro das Trevas. Como muita gente, estou bem interessado em ver a atuação de Heath Ledger, o Coringa, in memoriam. Dizem que ele vai ganhar o Oscar, póstumo, de ator coadjuvante, por sua brilhante atução. Vou conferir.
Nanna, que aprendeu a usar o computador, diz que não há problema algum em se postar mais de uma vez no mesmo dia.
Mas, porque estou escrevendo mesmo? Bem, sabe como é... o computador fica ligado o dia todo mesmo, sempre dou uma olhada na minha caixa de e-mails, no orkut e, a partir de ontem, no blog, para ver se tem algum comentário... então, veio aquela vontade de dizer alguma coisa. É isso!
Acontece que escrever tem algo de catártico. Por falar nisso, lembrei agora do meu primeiro texto pretensioso. Trata-se de um miniconto, escrito há pouco mais de dez anos.
Digo pretensioso porque foi escrito pretensiosamente. Até então, eu só havia escrito utilizando caneta e papel pautado. Bem, eu tinha uma espécie de diário, desde a adolescência, com textos em prosa e poesias. Se não me engano, o diário maluco preenchia quase dois cadernos grandes, daqueles de doze matérias. Mas, quis a Providência que eles fossem parar no lixo e, há muito, estão perdidos para sempre.
Voltando ao miniconto. Escrevi-o no computador! Pela primeira vez sentei diante de uma tela em branco e produzi uma peça de ficção. Mas não é por isso que ele é ambicioso. Mostrei-o, imediatamente, ao meu amigo Giovani. Lembro que ele não gostou.
Segue o texto:

"O OUTRO



Lembro do acontecido com uma clareza que me atormenta.
Início do verão passado. Talvez mais por influências de amigos do que por vontade própria, resolvi fazer caminhadas durante as manhãs.
Nem sempre caminhava pelos mesmos lugares, bem como não raro já pegava um sol mais rigoroso, principalmente nos finais de semana e feriados.
É certo que não mais sou um atleta, se é que algum dia cheguei a ser; mas se não estou entre os mais bem condicionados, tampouco admitiria pertencer ao grupo dos piores em condição física.
Entretanto, tudo isso é secundário.
O importante é que foi numa dessas caminhadas que presenciei o fato mais bizarro e inverossímil de que posso me lembrar.
Ainda estava no início do percurso; mal tinha atingido meu ritmo, que não é dos mais velozes. Senti uma presença estranha, como se estivesse sendo observado. Como qualquer um faria, dei uma olhada ao redor. Notei que vinha um homem na mesma direção e sentido que eu, porém bem mais atrás.
Estava ele com roupa esportiva, o que me fez deduzir, com razão, que se tratava de outro caminhador. Continuei meu percurso normalmente. Vez por outra olhava meio de lado, de canto de olho, e sempre percebia sua aproximação.
À medida que ia chegando mais perto de mim, senti uma familiaridade inexplicável por sua figura, circunstância que me motivou a ficar mais atento, quase incomodado. Queria saber de quem se tratava e, sobretudo, se fosse alguém conhecido, cumprimentar.
Por coincidência – e hoje em dia não mais acredito em coincidências – no momento exato em que ele chegou perto de mim, e eu olhei para ele, os fortes raios do sol, refletidos pelo pára-brisa de um automóvel estacionado, ofuscaram-me completamente. Por conseqüência, não pude saber de quem se tratava.
O que me impressionou foi o movimento brusco, como que assustado, por ele realizado ao tempo em que proferia algo sofrido e ininteligível. Sem entender o que estava acontecendo, observei atônito aquela figura correndo em desespero para longe de mim.
Mais tarde parei para refletir sobre o que acontecera. A nenhuma conclusão importante cheguei, a não ser que ele tivera sido pego de surpresa por minha pessoa. Mas por que será que ele ficou tão assustado ao me ver? Depois de algum tempo, como deveria ser, não mais me importei com aquilo. Esqueci.
Vieram as chuvas e, junto com elas, a preguiça. Deixei de andar.
Há duas semanas, e dessa vez por vontade própria, decidi caminhar novamente. Agora vejo como são os tais desígnios ocultos. Voltei a um dos locais onde costumava andar e, como era domingo, já cheguei bem tarde.
Estava eu praticamente concluindo a caminhada, quando percebi a figura de um homem à minha frente, andando num ritmo menos intenso do que o meu. Fui me aproximando aos poucos, pois tive a mesma impressão de familiaridade antes descrita. Só podia ser ele. Acelerei. Finalmente descobriria a figura misteriosa.
Interessante é que ele, vez por outra, olhava meio de lado, como que acompanhando minha marcha. Quando cheguei bem perto, digo o mais perto que efetivamente pude chegar, ele virou o rosto e olhou para mim.
Não posso descrever o susto que tomei. Recuso até tentar qualificar o medo que tive, ao ver a minha própria imagem olhando para mim. Era eu, eu mesmo!
Minha reação automática foi um sobressalto espontâneo, seguido por um gemido de pavor. Quando voltei a uma relativa normalidade, após uma corrida desesperada em sentido contrário, foi que pude visualizar exatamente o que tinha se passado.
Eu vi meu rosto olhando para mim, como num espelho. Só que, ao invés de uma fisionomia aterrorizada como a minha, o outro parecia não me reconhecer, ou melhor, dava a impressão de que não estava percebendo quem eu era, nem o que estava se passando, como se estivesse ofuscado por algum reflexo. Sua expressão foi de surpresa branda com minha reação arrebatadora, e tenho para mim que ele ficou parado a me observar, enquanto eu fugia por uma reação incondicionada.
Não foi difícil ligar os fatos. O estranho que eu vira, sem identificar, no verão passado, estava com a roupa que vesti no segundo encontro. E o outro eu, desse encontro recente, estava com a roupa que eu vestira na primeira ocasião, e que sequer mais possuo. Tanto o local quanto a hora foram as mesmas.
Para mim é evidente que encontrei comigo mesmo. Podem imaginar a reviravolta ocorrida em minhas concepções de tempo, vida e verdade.
Não tenho outra ambição nesta vida além de me convencer de que estou errado, ou esquecer definitivamente dessa minha imagem que me persegue na memória. A perspectiva de me encontrar novamente é algo arrepiante.
Eu também chamaria de louco ou mentiroso alguém que me contasse uma história como esta.
Minha pretensão ao narrar este episódio, que lamentavelmente é verídico, não é outra senão abrir caminho para que outras pessoas, vítimas também do extraordinário, possam se sentir encorajadas a fazer o mesmo.
Dessa forma, e esse é o sopro de esperança que me resta, poderei, quem sabe, explicar racionalmente este evento ou concluir que me enganei por algum motivo; antes de aceitar que foi algo sobrenatural, hipótese que não trará de volta o sono que perdi desde então."


Janeiro de 1999.



Pretensioso, não? Mas só eu sei a felicidade que foi terminá-lo.
Salvo engano da minha parte, 1999 foi o ano em que fui morar sozinho, em um apartamento de 50 m2, na Ponta Verde.
E essa história de grano duro?
Fiquei com esse mote na cabeça. Sempre que como massa recheada me arrependo. Hoje, não sei porque, pedi ravioli de parma aos quatro queijos. O Wladimir já tinha dito que, na Itália, não se aprecia muito massa com molho de queijo. O Wlad e os italianos estão certos, afinal.

10 comentários:

  1. Humberto,

    Ja conhecia alguns textos que você andou publicando por aí, sempre muito espirituosos e instigantes. O conto publicado no blog é delicioso. O encontro consigo mesmo é uma das maiores aventuras do ser humano. É quando nos vemos sem máscaras ou convenções sociais, numa verdadeira nudez espiritual. É nessa crueza do "ser"que encontramos a própria essência e podemos caminhar na direção da verdade.Fico muito feliz em saber de seu blog. Daqui para frente serei um leitor ávido e permanente.
    Forte abraço.
    George

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  2. Caro George,

    O tema do alter ego sempre me fascinou. Influência do argentino J.L. Borges, imagino. Seu comentário enriquece meu conto.
    Muito obrigado,
    Do seu leitor assíduo
    Humberto

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  4. Beto,

    Adoro sua forma peculiar de escrever e esse conto, em espcial, é um dos meus preferidos. Se a inspiração surgir e você quiser escrever, escreva. Uma vez escrevi no meu blog como deve ser difícil para os jornalistas "matar um leão a cada dia", ou seja, escrever obrigatoriamente todos os dias. Comecei escrevendo diariamente no blog e hoje escrevo quando a inspiração vem. Cada um encontra o seu ritmo... O seu blog está ótimo! É um presente para nós, leitores. Todos os dias darei uma passadinha aqui! Beijos da irmã.

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  5. Hahahahahahahahahahaha

    Pretensão pura!
    Todos temos nossos momentos pretensiosos.
    Mas gosto muito desse universo do fantástico que você imprime a seu conto. Lembrou-me Borges e seu discípulo Cortázar.
    Gosto muito também da leveza das coisas que você escreve aqui, e o mini mini mini conto sobre o Celebration é muito, muito bom. Bem típico das festas de fim de ano.

    Grande abraço, Humberto.

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  6. Humberto, já assinei para receber as novidades do seu blog, que não dá para parar de ler. Sobre não publicar mais de uma vez por dia, isso é relativo. Tem, abaixo do botão de publicar, um que permite agendar para outro dia. Então, escreve quantas vezes quiser e pode ir programando para o futuro. Uso muito isso. Abraço!

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  7. Valeu pela dica, Sérgio!
    Grande abraço.

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  8. Primo Beto. Adorei o conto. Lembro dele de longas datas e guardei essa lembrança com carinho. O link de seu blog já está no meu e estarei sempre por aqui. Longa vida!

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Muito obrigado pelo comentário!